sábado, novembro 06, 2010


Lá onde não vivem monstros


"Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto"
Guimarães Rosa


E então ela sonhou em ser capturada por uma astronave de cristal. Alguém que a pudesse tirar do mundo da lua e que a colocasse no chão feito pluma que cai de uma nuvem ao som do vento que balouça o móbile. Não, ela não queria mais passar os dias costurando nuvens que formam desenhos geométricos, unir retalhos de sonhos e arrematá-los ao final do dia. Ela estava exausta de remar um barquinho que não tinha um dia sequer que não encontrava uma palavra rocha, frases petrificadas, letras feito banco de areia no meio do trajeto. Coitada. Mesmo assim, bem lá no fundo do seu músculo fazedor de tumtumtum o mais interessante era ver o movimento das águas que ficavam pra trás com a força do remo. Era essa sua vontade e coragem em tecer com linhas de alegria, tecidos de felicidade, dia a dia despindo seus medos e vestindo a capa dos sonhos feito de nuvens desenhos costurados – sua fuga - carregando uma boneca de pano nas mãos, se escondendo no mundo retalhado de aquarela encantado.

Assim, ao som de uma máquina de costura a cada toque no pedal, ela ia tecendo, tecendo... como criança que cai da bicicleta e continua a pedalar. Dói, arde, ela chora, mas segue pedalando. Construindo retalhos, bordando céu azul, sol brilhante, horizonte bonito e pontinhos cintilantes espaçados.

Ela segue a tecer... Acreditando, ainda, na fada do dente, no pote de ouro no final do arco-íris, na família do comercial de margarina e na felicidade que dança como borboleta pelo ar. Costurando sonhos de futuro com linhas douradas.

Por mais que um dia ela cogitou, por favor, eu peço, não entrecortarem suas asas. Ela pode perder a cor, o perfume, a força... a vontade de tecer e bordar uma colcha de seda reluzente. Embora pareça que seu coração esteja no chão. Chão tal qual fim de festa, logo ali ao lado da serpentina rasgada do baile de Carnaval, e mesmo de longe seja possível ver fragmentos picados, papéis rasgados soltos pelo ar e ela queira fugir do mundo que a acolheu, por favor astronauta, não a leve do seu mundo satélite da Terra.

Por mais que pareça que seu pobre coraçãozinho de papel ainda esteja sendo cortado ela seguia pedalando. Com pingo a pingo de palavras escritas que formavam rio de tinta. E justamente por isso dentro dela continha, bem no meio do peito, um oceano de tinta translúcida. Mesmo assim continuava a tecer, tecia ali um mundo que ela desejava fugir. Tecia a lua, os jardins, os bosques, reunindo retalhos... derramando um rio pelos olhos de semente de romã.

Outro dia a fizeram acreditar que a lua havia mesmo despencado do seu céu, seu mundo perdido o brilho e o dia se refugiado à sombra da noite e desde então tudo era um pouco mais triste. Sua saída foi tecer novamente, costurar os retalhos com linhas de esquecimento uma colcha de lembranças - ruins, mas lembranças - com nuvens de tempestade para passar os maus dias bem depressa, em um pano escuro, observando tudo feito noite, noite de lua cheia e estrelada. E desde então ela tece a saída do mundo que escolheu viver.




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