sexta-feira, outubro 29, 2010


Quando eu inventei o medo


Me aventurei no mais alto da roda gigante sem fechar os olhos. Corri para ser a primeira da fila na montanha russa. Quando as luzes se apagavam e já era hora de dormir, inventava minha máquina de voar e atravessava as nuvens de algodão doce, num mundo de páginas de sonhar. Subia nas árvores para fugir do pirata e com a mesma intensidade voava bem alto de braços bem abertos tocando as estrelas sem sair do chão. O abajur era o fim do túnel, ou o farol do carro, ou a lua. As estrelas? Ficavam bem ali no teto do meu quarto.

Nunca tive medo de altura, do escuro, do tropeço, da queda, de escalar muros, do perigo, do vento no rosto, das músicas de ninar, do ‘prestatenção’ menina, nem da coxinha da esquina. Gostava das viagens brilhantes e divertidas pelos ares, do mundo colorido, da varinha de condão, e do faz de conta que, às vezes, acontecia. Sempre gostei de abraçar apertado, de falar bem alto e de saber se era com j ou com g. Achava que gente grande era inteligente e que o monstro jamais sairia do armário. Sabia que do chão não passava e que quando casar sarava, bastava um beijinho que passava.

Difícil foi aprender com o tempo a ‘desmagia’ da vida preto no branco, que nem tudo pode ter sabor de diplink e que um dia o mundo colorido podia ser também monocolor, que se eu cortasse doeria, que nem toda história teria um final feliz, que a fada madrinha não viria nos visitar com sua varinha do ‘a gente resolve isso também’ e que nem tudo que reluzia era mágico. Com o tempo fui descobrindo que só se pula de olhos fechados nos braços do papai, porque você terá a certeza que ele irá estar te segurando de braços abertos e que jamais você tocará o chão.

Quando você descobre que não basta apenas um toque de pirilimpimpim você passa a se questionar sobre as coisas. Há sempre um momento na vida que a gente passa a ter medo de subir em árvores, escalar muros, fechar os olhos na sacada do último andar, ter medo da Cuca que vem pegar e até da salmonela do restaurante do chinês. Tudo isso sabe por quê? Simplesmente porque, será que se a gente pular de lá de cima, de olhos fechados e de braços bem abertos, lá onde o vento costuma bater bem forte no rosto e desfazer o penteado, alguém nos segurará em um abraço apertado e não permitirá que toquemos o chão caso não alcemos voo e o paraquedas não abra?


segunda-feira, outubro 11, 2010


Costurada por sonhos


“A vida ali é um deleite
Suave tal qual puro azeite
Na bela Cocanha
O povo se banha
Em rios de mel e de leite.”

Tatiana Belinky

Meu pai sempre me disse que para alcançar tudo o que queria bastava fechar os olhos, cruzar os dedos, respirar fundo, imaginar com muita força e um pozinho mágico cairia sobre mim. Ao toque de um carrilhão seria possível alçar altos voos, atravessar oceanos, desbravar a floresta encantada, navegar em alto mar, explorar a via lactea, combater o pirata e espantar o bicho papão.

Foi assim que construí castelos de areia, aeronaves de papel, montei cabana de lençois, barcos com remos de colher e na maioria das vezes corria da cuca que vinha pegar e logo dormia - raramente me arriscava a não fechar os olhos só pra ver se ela vinha mesmo.

Já fui bailarina da caixinha de música, boneca de pano, princesa dos sapatos de cristal, atriz, cantora, astronauta, a moça do tempo, biologa, historiadora, 'desenhadora', alpinista, patinadora, magica e encantadora. Vesti a capa do super-herói, me transformei em fada-madrinha e gata borralheira. Fui o que jamais poderia acreditar ser. Acreditando que as estrelas eram pontinhos de purpurina no céu, que minha casinha florida ficava no alto da colina, que um dia o príncipe azul salvaria todos nós e que a bruxa malvada morava em uma casinha de doces.

Desde meus primeiros aviõezinhos coleciono pequenos sonhos, algumas folhas de papel rabiscadas que me levam pra longe. Chego a tocar o infinito colorido que vibra feito um dedilhar de piano.

Vovó certa vez me disse que a vida é como as histórias que a gente escuta, conta ou lê, e que a gente é o que imaginamos ser, assim como a torta de espinafre que nos devora com os olhos, o boneco de açucar que cobre seus bolos, que mergulha na piscina de geleia e tem vida própria; assim como a menina que colocou sal ao invés de açucar no sorvete, lembra?

Costumava ler e reler histórias que sabia de cór. E mesmo sabendo de cór sentia todas às vezes a mesma emoção de quando abria pela primeira vez o livro, o cheiro do papel, as páginas grudadas .... o voo na imensidão.

Nem sempre a gente aprende com nosso pai a dar mortal na piscina, escorregar no tobogam ou ir sozinha ao carrinho de bate-bate, mas a coragem e o poder que ele me ensinou mora aqui dentro de mim, o poder de ser retalhada de sonhos, invenções e imaginação que às vezes vivem, morrem e transbordam aqui por dentro.

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